Um motorista de aplicativo que trabalhou em Mato Grosso para a Uber Brasil teve reconhecido na Justiça o vínculo de emprego com a plataforma – que deverá pagar FGTS, 13º salários e outros direitos ao trabalhador. O caso foi julgado na 6ª Vara do Trabalho de Cuiabá e ainda cabe recurso à decisão.
Ao acionar a empresa em julho do ano passado, o trabalhador detalhou a forma de sua atuação como motorista do aplicativo entre fevereiro de 2017 até o início de 2020, quando foi bloqueado. Sustentou a existência de vínculo empregatício e, portanto, o direito de receber, entre outras, as verbas rescisórias a serem calculadas com base na média de 400 reais obtidos semanalmente.
A Uber negou a relação de emprego e alegou que o que há entre a plataforma e os condutores dos veículos é uma prestação de serviço autônomo.
O juiz Alex Fabiano concluiu, no entanto, que o trabalhador era um empregado vinculado à empresa, após avaliar presente no caso os requisitos que caracterizam o vínculo empregatício, como subordinação, onerosidade e pessoalidade.
A subordinação, apontou o magistrado, é vista de forma clara, já que a atuação profissional é verificada passo a passo em tempo real pelo aplicativo da empresa, que examina o trajeto, a velocidade desenvolvida, avaliação do cliente e até uma frenagem brusca.
“É uma hipervigilância. Nem Júlio Verne, em suas extravagantes ficções, George Orwell, com o “Big Brother”, ou, ainda, Jeremy Bentham, no seu distópico panóptico, conceberam algo assim”, mencionou o magistrado.
O juiz não aceitou também o argumento da empresa de que o percentual que repassa ao trabalhador é alto, o que demonstraria que a relação estaria mais próxima de uma parceria ou sociedade. Conforme o magistrado, para dar crédito a tal raciocínio, seria preciso ignorar as despesas que o trabalhador tem com seu veículo.
“A independência econômico-financeira é apenas aparente. É falacioso, pois, falar-se em ausência de alteridade”, frisou.
Outro ponto destacado na sentença refere-se ao fato do condutor do veículo não poder dar preço ao trabalho que prestava, decisão que cabia à empresa. Assim, apontou o juiz, não importa a variação do valor das manutenções, prestações do veículo ou do combustível, o preço não era fixado pelo motorista.
Do mesmo modo, o juiz acrescentou que o motorista não poderia rejeitar clientes, definir o modo de trabalho ou captar serviço, ações próprias de um trabalhador autônomo.
O argumento de que a Uber é apenas uma empresa de tecnologia que disponibiliza um aplicativo aos condutores de veículo também foi afastado pelo magistrado. Apontando outras decisões judiciais, ele frisou que a empresa tem como objetivo principal o transporte e, nesse sentido, é destaque na mídia os projetos de transporte autônomo que ela desenvolve, conforme noticiado mundialmente.
Legislação
O juiz registrou que a legislação brasileira não cita explicitamente os trabalhadores de aplicativos por se tratar de condições de trabalho recentes, cujas tecnologias só foram disponibilizadas há pouco tempo, a exemplo da conexão 4G. Mas, lembrou que a Constituição Federal estabelece, em seu artigo 7º, regras mínimas que devem ser observadas quando ocorre trabalho subordinado, oneroso, prestado de forma pessoal e não eventual. “É o respeito à dignidade da pessoa humana. Uma pessoa não pode ser tratada como objeto, mercadoria”, frisou.
Além da norma constitucional, o magistrado citou a previsão inserida em 2011 na CLT, com a Lei 12.551, que regula o trabalho a distância, e a qual prevê que os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando e supervisão do trabalho. “Vê-se, pois, que a subordinação pela via telemática, realidade descrita nos autos, restou contemplada na norma acima mencionada”, afirmou.
Por fim, o magistrado concluiu que, com base no princípio da primazia da realidade, segundo o qual prevalecem os fatos às formas, o motorista não era nem pequeno empreendedor ou parceiro, mas empregado vinculado à empresa. “Agia como empregado, recebia como empregado, subordinava-se como empregado, na frequência de atividades como um empregado; logo, era… empregado”, concluiu.
Assim, determinou o registro da Carteira de Trabalho, constando a dispensa sem justa causa decorrente do bloqueio feito pela empresa, e o pagamento de aviso prévio, 13º salário, férias, FGTS e multa pelo atraso na quitação das verbas rescisórias.
Dano moral
A Uber foi condenada também ao pagamento de indenização pelo dano moral causado ao trabalhador bloqueado pelo aplicativo, sem qualquer justificativa, ficando ele sem a remuneração de forma abrupta. O valor da compensação foi fixado em 5 mil reais.
O juiz determinou ainda que a empresa arque com os honorários de sucumbência, devendo pagar ao advogado do trabalhador o percentual de 15%, a ser calculado sobre o crédito bruto da ação.
Outro lado
A reportagem tentou contato com a assessoria da Uber, que respondeu por meio de nota. Confira o comunicado na íntegra a seguir.
“Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça do Trabalho vêm construindo sólida jurisprudência confirmando o fato de não haver relação de emprego entre a Uber e os motoristas parceiros, apontando a inexistência de onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação, requisitos que configurariam o vínculo empregatício. Em todo o país, já são mais de 1.130 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho neste sentido, sendo que não há nenhuma decisão consolidada que determine o registro de motorista parceiro como empregado da Uber.
Os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber: eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima.
O TST já reconheceu, em quatro julgamentos, que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os parceiros. No mais recente, a 5ª Turma considerou que o motorista “poderia ligar e desligar o aplicativo na hora que bem quisesse” e “se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos de viagem desejasse”.
Em março, a 4ª Turma decidiu de forma unânime que o uso do aplicativo não configura vínculo pois existe “autonomia ampla do motorista para escolher dia, horário e forma de trabalhar, podendo desligar o aplicativo a qualquer momento e pelo tempo que entender necessário, sem nenhuma vinculação a metas determinadas pela Uber”.
Entendimento semelhante já foi adotado em outros dois julgamentos do TST em 2020, em fevereiro e em setembro, e também pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de 2019“