CBN Explica – Ao longo das primeiras semanas de campanha eleitoral, dois dos candidatos que disputam o Governo de Mato Grosso trouxeram à tona o debate em torno da chamada “fila dos ossinhos” em Cuiabá. Mauro Mendes (União Brasil) e Márcia Pinheiro (PV) tem trocado acusações a respeito do assunto, inclusive tendo como interlocutores alguns de seus aliados políticos.
Em meio à pandemia da Covid-19, a capital do Estado líder do agronegócio do País, acabou ganhando as manchetes de noticiários brasileiros em razão das filas que se formavam quase que diariamente em um açougue da cidade.
No local, centenas de famílias chegaram a dormir ao relento, passar horas debaixo do sol na tentativa de conseguir doações de pedaços dos ossos com vestígios de carne resultantes do processo de desossa do boi.
As doações já ocorrem há pelo menos 10 anos, mas acabaram se intensificando no período em que a população enfrentou isolamento social decorrente da pandemia. Agora, às vésperas da disputa ao governo, o assunto passa a ser tema recorrente de embate entre os candidatos que estão nas duas primeiras colocações, conforme as pesquisas eleitorais.
Com isso, a CBN Cuiabá, que integra o Programa Núcleos de Checagem Eleitoral, liderado pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), decidiu explicar a realidade da fila dos ossinhos em Cuiabá.
Conteúdo analisado: Declarações de Mauro Mendes e Márcia Pinheiro durante a campanha eleitoral apresentam versões diferentes a respeito da fila dos ossinhos.
O governador, que chegou a dizer que os ossinhos doados pelo açougue são de ‘qualidade’, vem declarando que o caso é consequência da falta de assistência da Prefeitura da Capital, administrada pelo prefeito Emanuel Pinheiro (MDB), marido de Márcia Pinheiro.
“A fila do ossinho é na cidade de Cuiabá. A rede de assistência social em Cuiabá não está funcionando, quem faz assistência social é o Município”, afirmou.
Márcia Pinheiro, por sua vez, afirma que a culpa é Governo Estado que faz uma gestão “excludente”.
“Nosso país entrou de novo no mapa da fome, e infelizmente o Mato Grosso foi um de seus símbolos, com a famigerada imagem da fila dos ossinhos. Essa fila é o ícone maior desse Governo insensível que está aí”, disse.
A fila dos ossinhos
A CBN Cuiabá procurou a proprietária do açougue, Samara Rodrigues de Oliveira, para explicar o surgimento da fila dos ossinhos, mas ela preferiu não se manifestar sobre o assunto nesse período eleitoral.
A proprietária apenas lembrou que as doações são feitas há cerca 10 anos para famílias carentes da região da grande CPA. Bastante religiosa, ela disse que essa foi a forma encontrada para poder ajudar quem precisa.
“Nunca desejamos essa questão de mídia, principalmente nessa época de eleição, por isso decidimos não dar entrevista. Fazemos essas doações há 10 anos ou mais, porque tem 24 anos que meu marido mudou para Cuiabá e 24 anos que a gente faz essas doações. Isso não acontece de agora”, disse.
Ela ainda lamentou o fato de os candidatos estarem usando a situação para trocar ataques políticos.
“Eu acho que é uma falta de respeito o que fazem com a gente. Um querendo atingir o outro com a nossa imagem. Não respeitam o nosso trabalho como obra de Deus. Desrespeitam nossos nomes, nossa casa de carne”, afirmou.
Apesar disso, ela ressaltou que a primeira-dama de Mato Grosso, Virginia Mendes tem contribuído com doações desde que o caso ganhou repercussão na pandemia da Covid-19.
“Independentemente da política, faz muito tempo que ela [Virginia Mendes] nos ajuda. Eu que pedi para ela parar agora nesse período eleitoral”, declarou.
A pandemia
A fila dos ossinhos ganhou repercussão nacional durante a pandemia da Covid-19.
Centenas de pessoas passavam noites acampadas ao lado do açougue para receber as doações. Algumas chegavam a ficar no local por até 24 horas.
O caso foi relatado no programa Fantástico, da Rede Globo. Também foi retratado pela escola de samba Gaviões da Fiel, no carnaval de São Paulo de 2022.
À época, em entrevista à imprensa local, Samara contou que antes da repercussão na mídia, a fila tinha cerca de 150 a 200 pessoas. Depois, passou a receber de 350 a 400 pessoas ao dia.
“Pessoas que antes tinham emprego, hoje não têm. Pessoas que a renda não garante o sustento de todos da casa. Muitos recebem auxílio [emergencial] e aí têm que escolher: ou come ou compra remédio. São muitas situações”, afirmou na época.
“Metáfora”
O professor André Ribeiro Lacerda, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), disse que a fila dos ossinhos é mais uma “metáfora” criada pela mídia do que realmente um problema social significativo.
“Eu acho que precisávamos ter uma compreensão melhor desse fenômeno. A fila dos ossinhos funciona alguns dias da semana. Esses veículos de comunicação foram lá e entrevistaram duas, três pessoas. Qual critério foi usado para selecionar quem foi ou não entrevistado? Qual dia da semana eles foram entrevistados? Qual horário? Por que eu digo isso? Porque nós precisamos saber qual representativo essas pessoas que deram entrevistas são do fenômeno da fila dos ossinhos”.
“São mais homens? mulheres? desempregados? Do bairro? Fora do bairro? Por que outras pessoas nas mesmas condições socioeconômica que elas não participam?”, questionou.
O professor ressaltou que em outros lugares também existem fila dos ossinhos.
“Isso não apareceu como fenômeno típico de Cuiabá, absolutamente. Nós vimos em vários outros lugares do país esse fenômeno. Eu acho que tem muito de apelo político e pouco de concreto sobre a fila dos ossinhos”, disse.
Ele lembrou que a fila já existia há cerca de 10 anos e, portanto, não foi algo que surgiu em razão da pandemia, do aumento do preço da carne ou de algum governo.
Ressaltou que a fila aumentou significativamente justamente por conta da repercussão na mídia.
“A fila já existia antes da pandemia. Com a pandemia, o aumento do preço da carne por conta da demanda do mercado externo, ela [fila] ganhou novos contornos. Os próprios proprietários disseram que com a divulgação, ela aumentou porque as pessoas ficaram sabendo e foram para lá”, disse.
Para o estudioso, há vários atores sociais responsáveis por uma situação como essa.
“Há atores sociais de fora [do país], do mercado internacional, uma vez que a ação deles acabaram criando um aumento no preço da carne. Os próprios proprietários, que criaram as doações por estímulo religioso. Eu acho difícil culpar especificamente alguém. É um fenômeno com muitas variáveis”.
“O argumento de alguns economistas marxistas de que sendo Mato Grosso um grande produtor de carne bovina, deveria satisfazer a população local, também não é um argumento bastante razoável. Digamos assim, é o argumento de um grupo que vê as coisas dessa maneira. É uma maneira de olhar as coisas”.
Discussão eleitoral
Lacerda declarou ser uma pena a fila dos ossinhos ser um dos principais temas do embate político para Mato Grosso.
Para ele, há pautas mais importantes para serem tratados pelos candidatos.
“A questão da Educação, o número de pessoas que perderam seus negócios na pandemia, pequenos empreendedores que faliram. Eu acho que esses temas são muito mais cadentes. A questão da Saúde, das demandas que foram paralisadas por conta do tratamento da Covid”.
“A fila dos ossinhos é mais metáfora do que o realmente um problema social significativo num termo mais amplo. As pessoas vão questionar: mas comer carne não é importante? É importante, mas só se come de proteína a carne bovina? Me parece uma avaliação muito mais política, pouco compreensiva da situação e que colocou Cuiabá de maneira muito negativa no cenário nacional”.
O estudioso finalizou dizendo que o seu papel é entender a situação e há poucas coisas que permite enxergam a fila dos ossinhos como um problema social.
Por que explicamos: O Programa Núcleos de Checagem Eleitoral, liderado pela Abraji, apura conteúdos relativos às eleições m Mato Grosso que atinjam alto grau de viralização nas redes sociais.
Já o “CBN Explica” serve como instrumento para que os leitores entendam um conteúdo que está viralizando e causando confusão, como é o caso do tema aqui analisado.
O episódio da fila dos ossinhos em Cuiabá passou a ser tema de diversas peças de desinformação e é objeto de buscas constantes no Google.
Conteúdos falsos ou enganosos que envolvem o dia a dia do cidadão causam prejuízos ao processo democrático e atrapalham a decisão do eleitor, que deve ser tomada com base em informações verdadeiras.